Vale do Ivinhema Agora
Cultura Educação Região

A luta dos Ofayé para salvar uma língua quase extinta, falada por 5 pessoas

Algumas frases em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)

por: campograndenews

Brasilândia reúne 5 falantes da língua Ofayé, únicos no mundo. Agora, por meio da escola, crianças são a promessa de reviver a língua

“Ãnhora owixow xo’é”. “A língua é a casa do homem” é a tradução em português, para a frase em Ofayé. Se a língua é a morada do homem, mesmo depois de reconquistar seu território em Brasilândia, a 355 km de Campo Grande, o povo Ofayé ainda não tem a casa completa. A etnia tem apenas 5 falantes em todo o mundo, todos concentrados na aldeia onde vivem os indígenas em Brasilândia.

Passada de mãe para filho, a língua é hoje reproduzida apenas por 5 adultos, a maioria “anciões” da comunidade. A tentativa, agora, é fazer a língua reviver nas crianças que frequentam a escola municipal localizada na aldeia. Professores bilíngues – um deles um dos 5 falantes – e linguistas travam essa batalha cultural e constroem, aos poucos, a parede da casa simbólica dos Ofayé.

Essa etnia, cuja língua está ligada ao tronco Macro-Jê, é uma das mais antigas do Brasil e com presença mais antiga em Mato Grosso do Sul. Caçadores e coletores, estavam espalhados por todo o estado, já foram confundidos com os xavantes e se concentraram às margens do Rio Paraná.

Criança Ofayé observa o fotógrafo na aldeia onde vivem em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

Criança Ofayé observa o fotógrafo na aldeia onde vivem em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

É o que explica o pesquisador e antropólogo que conviveu durante anos com a etnia, Carlos Alberto dos Santos Dutra. “Houve um descaso com relação aos Ofayé, a região que mais habitavam era Campo Grande, então os vivos Ofayé são os vivos mais primitivos de Mato Grosso do Sul, superam os Kaiowá. Eles eram caçadores e coletores. Estudos demonstram a presença deles desde 4 mil anos atrás, através de objetos arqueológicos”, conta.

“Os Ofayé tiveram grupos, habitavam na região do taboco, com a guerra do Paraguai [1864 – 1870] foram empurrados em direção a São Paulo, às margens do Rio Paraná, migraram dessa região mais ao sul, então justifica a presença deles nessa região [Brasilândia] em função dessa migração. Teria havido outro grupo na região de Rio Verde, com documentação de 1905, que mostra que desceram do Rio Verde, pelo Rio Paraná e chegavam até Ivinhema”, explica.

Segundo o pesquisador, há, inclusive, certidões de nascimento dos indígenas na Fazenda Esperança em Brasilândia, alvo de disputa judicial no território. O processo de avanço da pecuária e lavouras, explica, foi acabando, aos poucos, com o modo de vida nômade dos Ofayé.

“Começara a plantar arroz, além da mandioca, isso é uma coisa recente, a partir de 1900. Quando eles foram encontrados no Rio Verde, eles já estavam morando já em casas, aldeias mais fixas. O processo de sedentarização foi muito mais rápido e tranquilo, mas para os povos coletores e caçadores foi muito em função das condições de caça e pesca, começou a lavoura, as cercas foram dividindo o território e acabam sendo aldeados”, conta.

Miscigenação – Aos poucos, outras etnias começaram a conviver com os Ofayé, processo que contribuiu para que a língua tivesse o número de falantes reduzidas. Casamentos com outras etnias, a exemplo dos Guarani e Kaiowá, dificultaram a passagem “de mãe para filho” da língua.

“Os Ofayé estão casando muito com os Kaiowá, eles estão com um grupo completamente diferente. É matriarcal, são as mães que conferem identidade. Os Ofayé não têm filho de mãe Ofayé e sim mãe Kaiowá. Só foram reconhecidos em 1992 [pela Funai], começou a vir outras etnias para dentro da aldeia, e acabou tirando aquele ethos, a parte mais sólida que o grupo tinha, que era conviver com a língua. Foi afrouxando os laços, acabou fazendo com que a língua ficasse esquecida”, explica o antropólogo.

Indígenas Ofayé em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

Indígenas Ofayé em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

“Tudo adormeceu” – Hoje vivem em torno de 100 pessoas na aldeia em Brasilândia. Professor, Silvano Morais de Souza, 30, é um dos indígenas “da nova geração” que fala pouco a língua Ofayé. Ele lamenta que com a linguagem, vai embora também a cultura. “A etnia Guarani é muito forte na questão cultural e linguística, eles falam muito, desde crianças a idosos, é um choque cultural, eles param de falar o Ofayé, é uma nova cultura surgindo”, explica.

“A língua materna é adormecida, aprendi até os 8 anos, consigo falar algumas coisas, sou o que chamam de falante passivo. Fico triste por ver desaparecer, mas esperançoso por revitalizar em termos de educação. A educação pode fazer o povo ser reconhecido culturalmente. Hoje tudo se adormeceu, cultura, língua, tradições e dança. Mas vejo uma revitalização com o professor”, disse.

Uma ação civil pública movida pelo MPF-MS (Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul) garantiu, na Justiça, as condições para que as cerca de 14 crianças da escola aprendam a língua com qualidade e estrutura. A sentença judicial determina que caberá ao estado e ao município promoverem o resgate escrito e imediato da língua Ofayé “para sua permanente preservação”, por meio de linguistas a serem contratados.

Alerta global – Hoje, as crianças já aprendem com uso de dicionário e uma cartilha ilustrada está a caminho. Esse resgate é simbólico e integra um alerta global, feito pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que determinou 2019 como o ano internacional das línguas indígenas. Coordenadora interina de cultura da Unesco no Brasil, Isabel de Paula explica que a determinação estabelece um calendário e serve como incentivo aos países, em especial ao Brasil.

“O ano internacional das línguas indígenas foi proclamado pela assembleia geral das nações unidas como uma estratégia para chamar a atenção do mundo, dos riscos enfrentados pelas línguas indígenas, porque são consideradas um patrimônio imaterial. São conhecimentos relacionados às suas tradições, às suas línguas, às sua culinária, à sua medicina, conhecimentos ritualísticos. São muitos conhecimentos que precisam ser salvaguardados para a continuidade da própria humanidade”, comenta.

A sala de aula onde, aos poucos, a língua começa a reviver (Foto: Ascom/MPF)

A sala de aula onde, aos poucos, a língua começa a reviver (Foto: Ascom/MPF)

A língua começa a acordar – É pela ação de professores como José Koi, que ensina a língua às crianças de 6 a 14 anos, que a língua Ofayé vai, em breve, “acordar”. “É um trabalho que precisa de muita paciência para convencer eles a valorizarem a cultura e a língua. O jovem indígena… eles têm vergonha de se identificar como índio, para nós isso é muito ruim. Temos que valorizar a luta das lutas das lideranças que já se foram. Passo para eles a importância da língua, da cultura e valorizar a história”, diz.

José aprendeu a falar Ofayé de forma tradicional, com os pais e avós. O português ele só aprendeu a falar com 11 anos e afirma que até hoje tem dificuldades. “Minha metodologia é de ensinar eles de acordo com a realidade, as cores das frutas, das árvores, a qualidade da moradia, como era a comunidade antes”, conta.

Números em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)

Números em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)

Segundo explicou o professor, o dicionário utilizado é fruto do trabalho de linguistas e pesquisadores. “Tem linguistas que estão empenhados na elaboração da cartilha, contratados pelo estado. Hoje já aprenderam

a falar algumas palavras. A gente está tentando conversar com os pais para que eles estimulem os filhos”, conta.

“É a luta de um povo que sofreu várias perseguições, perdeu seu território, ficamos perambulando para lá e para cá. Retornamos para cá em 1986, sofremos muita perseguição dos fazendeiros. Eu acho que a importância é que a Constituição garante tudo isso, a gente tem garantido na lei. E que os jovens e as crianças venham a conhecer a língua, com uma educação diferenciada”, opina.

José finaliza com uma lição, trazida pelos não indígenas, que garante que agora nada mais se perde: “Aprendemos com os não índios a registrar [por escrito e de outras formas, a língua]. Nosso objetivo é revitalizar as coisas do passado”, conclui.

Related posts

Ação do MPMS resulta na interdição de creche clandestina em Ivinhema

Anaurelino Ramos

MPMS garante condenação de influenciador digital por crimes eleitorais em Nova Andradina

Anaurelino Ramos

Sem respostas a ofícios, vereador oficializa requerimento ao Conselho da Juventude

Anaurelino Ramos

Deixe um Comentário