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Cercados por mansões e “bocas”, indígenas não têm água para matar a sede

Para guaranis-kaiowás e terenas de Dourados, a falta de água e a violência são ainda piores que a fome

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Crianças indígenas usam carriola para buscar água em mina (Foto: Divulgação) – CREDITO: CAMPO GRANDE NEWS

Por Helio de Freitas, de Dourados | Campo Grande News

Descaso. Essa é a palavra perfeita para definir o tratamento das autoridades públicas aos 20 mil guaranis-kaiowás e terenas que habitam as aldeias Jaguapiru e Bororó. Juntas, as duas formam a Reserva Indígena de Dourados, que há muitos anos se tornou um bairro pobre com todos os problemas da cidade e sem qualquer infraestrutura.

Enquanto o mundo se comove com as mortes de crianças e adultos yanomamis provocadas pela desnutrição em Roraima, os indígenas da reserva com maior densidade populacional do Brasil precisam andar até 5 km para buscar água numa mina em área de varjão. Ou esperar o caminhão-pipa, que só consegue atender todo mundo que precisa uma vez por semana.

“Dizem que água é saúde, então estamos doentes, porque aqui não tem água”. A afirmação é de Livanir Machado Aquino, que há 40 anos desenvolve projetos esportivos com crianças e adolescentes indígenas.

Presidente da associação Guateka (Guarani, Kaiowá e Terena), Livanir diz que neste sábado (28) haverá competição esportiva na sede da entidade, mas não tem água. “Não tem uma gota, já avisamos os pais e os alunos que precisa levar água”, disse ele.

Nesta sexta-feira, a reportagem do Campo Grande News percorreu os pontos críticos da reserva de Dourados para ouvir lideranças e moradores sobre os principais problemas da comunidade. Todos são unânimes em apontar como principais dificuldades enfrentadas pelos moradores a falta de água e a insegurança associada ao uso de drogas e alcoolismo.

“Muitas famílias enfrentam, sim, dificuldade para comer porque não tem terra para todo mundo plantar nem mesmo mandioca, batata, milho. Quem pode, vai na cidade comprar. As poucas cestas que chegam não são suficientes e nem todos recebem o Bolsa Família, mas nós índios somos fortes, a gente sabe se virar. Come alguma coisa, mas o que está nos matando mesmo é a falta de água, é a violência por causa da droga e do alcoolismo”, diz o vice-capitão da Aldeia Jaguapiru, Ivan, conhecido por “Tainha”.

As “bocas” estão ali mesmo. Moradores da aldeia apontaram à reportagem alguns locais onde moram os traficantes. Alguns são indígenas, outros são “brancos”, casados com mulheres da comunidade.

As casas dos traficantes se destacam na multidão. Quase todas têm muro e portão fechado. Outros, operam em oficinas e ferro-velho de fachada. Motos e bicicletas roubadas e trocadas por droga são desmanchadas nesses locais. “A gente mais velho sabe lidar com essa situação toda, mas o jovem não consegue e se entrega para a droga e o álcool”, disse Tainha.

Oficialmente, a Reserva de Dourados foi criada em 1917 com 3.600 hectares. Entretanto, os indígenas afirmam que na época as áreas ocupadas por seus antepassados eram bem maiores e chegavam à barranca do Rio Brilhante.

“Já começaram a nos confinar na criação da reserva e esse confinamento continua até hoje”, afirma o capitão Ramão, também da Jaguapiru. Segundo ele, o anel viário instalado na região norte do município foi estratégia do governo para barrar qualquer possibilidade de aumento da reserva. A estrada liga a BR-163 à MS-156 e à MS-162 e passa ao lado das aldeias.

Vizinhos ricos – Com a ampliação do perímetro urbano de Dourados em 2011, sítios e chácaras da região norte passaram a dar lugar a condomínios fechados de alto padrão. Atualmente, fica ali o metro quadrado mais caro da segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul. No condomínio mais luxuoso, só o terreno é vendido por R$ 1 milhão.

É nesse contraste que os moradores da reserva de Dourados vivem, confinados na pobreza, sem água para tomar banho, cozinhar e lavar a roupa. Habitam barracos enquanto veem de longe os “vizinhos” endinheirados chegando em carrões importados e protegidos por muros altos.

Descaso – “As pessoas de fora da aldeia não sabem o que passamos aqui. Acham que índio é preguiçoso, que não gosta de trabalhar, mas a gente trabalha, sim. Muitos estudam, arrumam emprego. Outros não conseguiram estudar, não têm terra suficiente para plantar e não existe ação de verdade dos governos para resolver nossos problemas”, afirma o vice-capitão Tainha.

Segundo o capitão Ramão, a falta de água existe há anos. “Quando a Funasa começou a implantar as redes a gente falava que não haveria água para todo mundo. Só existem dois poços e a água bombeada não chega nas caixas”, afirmou.

Por iniciativa das atuais lideranças, reservatórios com capacidade para 500 litros estão sendo entregues a moradores mais necessitados. Mas, como quase sempre ocorre com o poder público, a ajuda é insuficiente. “Pedimos 200 caixas, mas só mandaram 65”, disse Ramão.
Isaías mostra caixa d'água que recebeu, mas não estreou porque não tem água (Foto: Helio de Freitas)
Isaías mostra caixa d’água que recebeu, mas não estreou porque não tem água (Foto: Helio de Freitas)

Os reservatórios foram enviados pelo setor de saneamento do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), órgão da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), do governo federal.

“Ganhei uma caixa, mas não adianta nada, a água não chega aqui, tem que torcer para chover, para poder encher. A sorte que tenho um poço, que tem água suficiente para nós e para ajudar os vizinhos quando precisam”, afirmou Isaías Oliveira, morador da Jaguapiru. O poço fica no quintal da casa. Não existe revestimento, não tem tampa e a água é puxada com um balde amarrado numa corda.

Água nas costas – Perto dali, uma das moradoras de dois casebres vizinhos afirma que no local a água encanada não chega, não tem poço e não tem nem mesmo o reservatório para água da chuva.

“Nós mulheres e crianças vamos buscar água lá embaixo, não tem o que fazer. Se não for assim, não tem água”, disse ela. Ramão informou à moradora que cobrou de novo e espera que o Dsei envie mais caixas. “A gente espera que nesse novo governo a vida melhore aqui, porque piorou muito nos últimos quatro anos”, disse ele.

O capitão Ramão levou a reportagem até a área de várzea onde os moradores buscam água, na margem do Córrego Sardinha. Para chegar na mina, geralmente de bicicleta ou com carriolas, enfrentam sol escaldante por estrada de terra, coberta pela poeira provocadas pelas carretas que deixam uma pedreira vizinha à aldeia.

A reportagem procurou representantes do Dsei em Dourados e Campo Grande para saber quais providências serão tomadas para resolver a falta de água na reserva. Sem conseguir respostas, a demanda foi encaminhada para a assessoria de comunicação da Sesai, que até agora não se manifestou.

Bororó – Na Aldeia Bororó, ao lado da Jaguapiru, os problemas são semelhantes. A falta de infraestrutura está presente em todos os setores, mas a violência tem espantado mesmo pessoas acostumadas com as dificuldades da vida.

“Toda a violência que vivemos aqui na Bororó ocorre principalmente pela bebida e pela droga. E a gente continua sem ajuda dos nossos governos”, afirma o capitão Dinho.

Alex, o vice-capitão, reforça que devido ao alcoolismo e dependência química, o índice de violência explodiu nos últimos tempos. “Não temos nenhum policiamento para estar aqui nos apoiando, fazendo investigação. O crime organizado encontra facilidade para vender o entorpecente dentro da comunidade. Se a polícia entrar aqui e combater o tráfico e a venda de bebida alcoólica para os menores, ia ajudar a diminuir essa violência”, afirma Alex.

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